terça-feira, março 31, 2009

O rádio tocava uma antiga música de 74. Billy Swan cantava "I can help", e era exatamente o que Oscar estava pensando olhando aquela baixa garota que tentava alcançar uma lata de ervilhas na quinta prateleira da sessão de enlatados do Deal's easymarket. Não era exatamente bonita, mas tinha algo naquele jovem corpo que Oscar queria. Talvez os firmes gluteos, ou a cintura em forma de arco, ou quem sabe as coxas torneadas. A verdade é que Oscar ainda estava escolhendo quando chegou para a moça e disse "eu posso ajudar", e pegou a lata de ervilhas. Ela lhe agradeceu com um largo sorriso. Oscar se apresentou e ela disse "Carol".

Bom, acabou a música e eu perdi a idéia.

segunda-feira, março 23, 2009

Sobre o aparelho digestivo

(...)

Pensei sobre aquele assunto anos e anos a fio. Acredito que por volta de 8 anos esse assunto foi pauta permanente das minhas epopéias pessoais. Todas as minhas criaturas internas se degladiaram num frenezi de discórdias e discussões. Alguma retaliação sempre sobra para os pobres que escolhem no mundo a missão de defender outrem.

Foi exatamente esse barulho de pratos, choro, urros de raiva e risadas histéricas que me acordou hoje pela manhã. O som foi escutado somente por mim e em minha lembrança apenas ficou. Mais um dia para a eterna divergência interna.

A digestão dessas assombrações do passado nunca termina. Após anos sentindo o refluxo ácido de tudo que aconteceu, chegei às mesmas perguntas que sempre tive. As mesmas conjecturas hipotéticas de o que teria acontecido se eu... Se eu... Se eu... Se eu... Se eu... Seu eu... Sueu e... Eus ue... Se.

Pensei sobre aquele assunto anos e anos a fio. E após todo esse pensar, gritar, discutir, reclamar, aceitar, discordar, brigar, perder e ganhar a razão, ter nenhuma razão, eu cheguei a fatal conclusão de que o que me aconteceu - qualquer que tenha sido a situação - não tem qualquer importância.

A única coisa que realmente é impossível de digerir é a permanente exalação desses "se".


Trecho do livro "Minha querida Ilha", de Ivan Patarca.

terça-feira, março 17, 2009

Sobre as folhas, a rua e o vôo.

(...)

Foi ontem. Embriagado em pensamentos e envolto por uma névoa que surge dos sonhos que eu me vi parado contemplando a mim mesmo no mundo. O mundo é grande, pensei, mas ao mesmo tempo minúsculo. Eu vejo até onde ele vai, e, apesar de saber que existe o além, eu não sinto isso. Sinto que meu mundo acaba no grande prédio comercial da Rua Olavo Strein com a Avenida dos Açores. Aquele prédio em sim é um mundo. Imponente em sua base de concreto.

Foi ontem, por volta das 3 da manhã. O grande Cinamomo me olhou nos olhos aqui da sacada do terceiro andar do prédio que moro. Depois de algumas olhadas, ele veio a ter comigo para uma conversa rápida. Disse-me que cansara desse vento em suas folhas. Lembro-me que parecia um pouco entediado com tudo isso, disse ele. Não quis perguntar o que seria esse "tudo" para que não me achasse tolo demais. Perguntei para ele como era ser uma árvore, ao passo que ele pensou e me perguntou como era ser uma pessoa. Confesso que foi um diálogo óbvio. Depois de um tempo vi que a minha pergunta, além de agressiva, foi incoerente, já que não só os seres humanos têm o direito de acharem que é sua experiência de vida a única forma de apreciá-la. Devem ter inúmeras vantagens em ser um Cinamomo que nenhum humano jamais saberá, pensei erroneamente. Pouco sabia que ao final desse encontro eu seria o primeiro a saber.

Nosso diálogo se estendeu por mais alguns instantes. Falamos sobre o tom ocre das paredes de tijolos em relação ao mesmo tom da terra sufocada abaixo de toneladas de concreto. Fizemos um interessante comparativo entre pessoas e árvores, onde fui informado que era uma ofensa generalizar as árvores, assim como também é fazê-lo com os homens. Falamos do mundo, das estrelas, uma breve passagem por carros movidos a combustível fóssil, e, por fim, chegamos a falar do vento.

Folhas ao vento existem para dizer ao mundo que o tempo não parou, ele disse, que a própria vida possui um fluxo com uma direção e sentido definido. Todos têm esse vento para nos avisar que o mundo nos espera. Para mostrar que não estamos isolados. Se o vento move minhas folhas, é a minha forma que ele toma. Sou tanto eu quanto sou o vento. Sou um pouco da forma do todo.

Não me lembro certamente quanto tempo durou todo o diálogo. No começo achei que tivesse se passado algumas horas, mas logo me dei conta que a televisão na sala continuava passando o mesmo filme (A vida interna de Martin Frost, P. Auster) e praticamente na mesma cena que havia parado de ver. Concluí que tudo não levara mais que alguns minutos, e, após esse pensamento, tive outra constatação - eu estava ali novamente. Meu grande novo amigo se silenciara, a rua úmida da noite estava quieta e o vento continuava sua valsa normalmente.

Nunca mais falei com ele. E tenho certeza de que nunca mais vou. Suas palavras ainda ecoam na memória daquela noite e eu ainda posso sentir o vento moldando o mundo a minha forma.

(...)


Trecho do livro "Minha querida Ilha", de Ivan Patarca.