Sobre as folhas, a rua e o vôo.
(...)
Foi ontem. Embriagado em pensamentos e envolto por uma névoa que surge dos sonhos que eu me vi parado contemplando a mim mesmo no mundo. O mundo é grande, pensei, mas ao mesmo tempo minúsculo. Eu vejo até onde ele vai, e, apesar de saber que existe o além, eu não sinto isso. Sinto que meu mundo acaba no grande prédio comercial da Rua Olavo Strein com a Avenida dos Açores. Aquele prédio em sim é um mundo. Imponente em sua base de concreto.
Foi ontem, por volta das 3 da manhã. O grande Cinamomo me olhou nos olhos aqui da sacada do terceiro andar do prédio que moro. Depois de algumas olhadas, ele veio a ter comigo para uma conversa rápida. Disse-me que cansara desse vento em suas folhas. Lembro-me que parecia um pouco entediado com tudo isso, disse ele. Não quis perguntar o que seria esse "tudo" para que não me achasse tolo demais. Perguntei para ele como era ser uma árvore, ao passo que ele pensou e me perguntou como era ser uma pessoa. Confesso que foi um diálogo óbvio. Depois de um tempo vi que a minha pergunta, além de agressiva, foi incoerente, já que não só os seres humanos têm o direito de acharem que é sua experiência de vida a única forma de apreciá-la. Devem ter inúmeras vantagens em ser um Cinamomo que nenhum humano jamais saberá, pensei erroneamente. Pouco sabia que ao final desse encontro eu seria o primeiro a saber.
Nosso diálogo se estendeu por mais alguns instantes. Falamos sobre o tom ocre das paredes de tijolos em relação ao mesmo tom da terra sufocada abaixo de toneladas de concreto. Fizemos um interessante comparativo entre pessoas e árvores, onde fui informado que era uma ofensa generalizar as árvores, assim como também é fazê-lo com os homens. Falamos do mundo, das estrelas, uma breve passagem por carros movidos a combustível fóssil, e, por fim, chegamos a falar do vento.
Folhas ao vento existem para dizer ao mundo que o tempo não parou, ele disse, que a própria vida possui um fluxo com uma direção e sentido definido. Todos têm esse vento para nos avisar que o mundo nos espera. Para mostrar que não estamos isolados. Se o vento move minhas folhas, é a minha forma que ele toma. Sou tanto eu quanto sou o vento. Sou um pouco da forma do todo.
Não me lembro certamente quanto tempo durou todo o diálogo. No começo achei que tivesse se passado algumas horas, mas logo me dei conta que a televisão na sala continuava passando o mesmo filme (A vida interna de Martin Frost, P. Auster) e praticamente na mesma cena que havia parado de ver. Concluí que tudo não levara mais que alguns minutos, e, após esse pensamento, tive outra constatação - eu estava ali novamente. Meu grande novo amigo se silenciara, a rua úmida da noite estava quieta e o vento continuava sua valsa normalmente.
Nunca mais falei com ele. E tenho certeza de que nunca mais vou. Suas palavras ainda ecoam na memória daquela noite e eu ainda posso sentir o vento moldando o mundo a minha forma.
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Trecho do livro "Minha querida Ilha", de Ivan Patarca.
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