Sobre os anos da difamação
Cada época vivida pelo homem carrega no seu plano de funda características comuns. Não falo aqui de aspectos claramente definidos, mas dos conflitos por poder, quebra de tabus, bandeiras falsas e ideologias infundadas. Vivemos uma importante questão todos os dias onde devemos escolher de forma dificultada pelos padrões que nos são introjetados na infância que vai além do que nós queremos ser ou quem somos - encaramos a indagação de o que nós somos.
Essa diferença entre quem e o que mostra seu lado mais vulgar nas pequenas escolhas. Serei eu uma pessoa honesta ou serei aquilo que devo ser para ser uma pessoa honesta. Claro, partindo do princípio de que a honestidade é de fato um valor a ser alcançado pelo indivíduo. Podemos seguir o caminho do óbvio que está por trás de qualquer valor, e logo caímos no como devemos ser, ou invés de ser primordialmente. Com isso, seguindo o exemplo da honestidade, nos tornamos a "coisa honesta" em oposição ao "alguém honesto". Sendo coisa, estamos fadados a ser e não ser na medida em que novas atribuições nos são passadas pelo meio externo. Ora, se sou coisa, não sou algo definido por mim - e nem tenho essa definição em mim, mas sou definido pelo meio, sou a coisa honesta porque aqui sou honesto da forma como entendo ser. Se em outra situação, deverei eu procurar um novo padrão e continuar minha atuação honesta ou seguir a mesma lógica existencial e continuar a viabilizar minha condição de coisa apenas aderindo à outra gama de atitudes?
Essa "coisificação" está muito aquém daquela primitiva condição do ser, onde o valor a ser externalizado possui a aura autêntica de quem é. Quando falo de uma condição do ser, falo de um ser que não atua aquilo, mas é aquilo. Independente da condição ou atitude que tome, ele tem essa qualidade como fundadora do Eu. Com isso temos alguns que mesmo não sendo honestos, serão vistos e tidos como tal. Desse apontamento que nasce frases tão ouvidas como "mas no fundo ele é", onde esse "é" diz respeito a característica moldadora do ser. O homem vive na sobra daquilo que ele é, e se queima do sol a medida que foge disso.
Vivemos um mundo de difamações, onde a condição de coisa ganha um valor exacerbado na medida em que viabiliza àqueles que não possuem o traço almejado de forma natural a atuar como se o tivesse. Assim como exigimos alguns aspectos de caráter daqueles que nos rodeiam, estamos alimentando um sistema que despreza e marginaliza outros aspectos igualmente naturais do ser humano, mas vistos como desprezível, e é exatamente esse isolamento de marcas humanas que viabiliza a exclusão social do homem dentro do próprio homem.
Negamos o que vimos como não pertencente ao que somos, mas que existe com igual força, e nos tornamos em parte ouvintes e em parte ignorantes. Difamamos no mundo aquilo que existe de forma inconveniente no Eu.
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