Houve dois sons que ele claramente ouviu naquele momento e que ficaram fixados na sua mente assim como o forte odor de pólvora e sangue.
O primeiro, ele acredita não ter escutado de fato. Foi mais um som perdido no seu inconsciente de alguma voz do passado que lhe dizia para pegar a bola. Som estranho, ele pensou. Era o som de uma criança de aproximadamente cinco anos de idade que, com um vasto sorriso e muita energia no corpo gritava "pega a bola". Mas havia mais alguma coisa que essa criança dizia. Alguma coisa que ele não se lembrava. Na verdade, essa era uma das muitas coisas que ele já havia esquecido. Era difícil lembrar de todas essas pedras depois de tudo que aconteceu. Seria quase impossível.
O segundo som, ele tinha clara certeza de ter escutado. Disso ele não tinha dúvida. Uma das poucas coisas que ele tinha certeza. Era um som distorcido. Pareciam dois sons unidos por um infeliz instante. Um parecia ser de uma explosão seca, como um berro feito com a boca bem aberta onde todo o ar dos pulmões rapidamente sai pela boca num período inferior a um segundo. Já o segundo, correspondia a um som oco que foi escutado por ele mais pela vibração do seu crânio do que pelo encontro de ondas sonoras com o seu tímpano, como foi o caso da primeira parte desse som.
Pensando nesses sons, ele sentiu algo quente escorrer pelo seu corpo enquanto o resto dele congelava. Sua visão pesou como nunca havia pesado. Ele pensou na ironia do momento: depois de tantos anos, tantos amores, tantas dores, tantos dias e noites e tantos tantos, a única coisa que ele pensava era em dormir. Mas ele sabia que não podia. Suas pernas cederam e seus joelhos encontraram o chão. "Só mais alguns minutos e eu estarei novo em folha", ele pensou. Claro, ele só precisava descansar. Só mais cinco minutos.
Ao olhar para a sua mão direita ele notou que a mesma estava vermelha, assim como o resto do seu corpo. Mas o que será? Ele sabia. Era óbvio. Ele sabia que havia procurado isso. Como ele pode pensar que depois de tudo que ele fez isso não aconteceria? Todos pensam que são super-homens até se encontrar com suas fraqueza. Do outro lado da rua um homem segurava o instrumento "musical" responsável pelo segundo som, e, então, ele entende perfeitamente tal som. Parte dele foi o disparo da arma que aquele homem segurava e a outra parte foi o encontro do projétil com o seu crânio. Simples. Ele se sentiu estranhamente tranqüilizado por um instante. Sentiu-se como quando lembramos de um nome que parece estar tão próximo que não nos lembramos.
Uma mão encontrou a calçada.
"Droga... Minha roupa nova", pensou. Ele sempre se achou um materialista miserável. Era o final perfeito para uma vida medíocre. É, estava tudo bem. Ia dar tudo certo. Ele merecia aquilo. Nem era tão ruim. Como diz o ditado, merda acontece. Ele até teve vontade de rir! Na verdade, ele sorriu com metade da boca, mesmo sendo difícil de identificar aquela expressão na sua face semiparalizada e embotada de sangue, mas ele riu e jurou olhar nos olhos do "músico" do outro lado da rua.
Foi quando de repente ele se lembrou do primeiro som. Aquele som voltou mais forte do que qualquer coisa. Mais forte do que as sirenes. Mais forte do que o grito de uma mulher que saiu correndo. Mais forte que qualquer som. Aquele som entrou na sua cabeça mais fundo que a bala .357. Ele lembrava o que faltava no som, aquela frase incompleta. Pega a bola... Mas na sua cabeça a frase havia se completado! Finalmente.
Ele juntou suas últimas forças como um mendigo. Encheu o que pode seus pulmões de ar. Aquele odor de sangue e pólvora lhe surtiam um efeito embriagante. Num único espasmo, o ar correu pela sua garganta amargada por cigarros e bebidas e, ao entrar em contato com as suas pregas vocais, a palavra "papai" foi emitida. Ninguém escutou. Já não ouvia mais. Mas sabia que havia dito.
Seus lábios encontraram o asfalto. Ele o beijou com a boca aberta, olhos abertos e o selo desse romance foi colorido de vermelho.
Por um instante ele se arrependeu. Mas, quem se importa?
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